Corre em livros de História a seguinte anedota sobre o então imperador Dom Pedro 2º: ao chegar ao baile que acabou sendo o último do seu reinado e da monarquia, no dia 9 de novembro de 1889, tropeçou ao entrar no salão. Ao se reerguer, disse, brincando: “a monarquia tropeça, mas não cai”.
Corre em livros de História a seguinte anedota sobre o então imperador Dom Pedro 2º: ao chegar ao baile que acabou sendo o último do seu reinado e da monarquia, no dia 9 de novembro de 1889, tropeçou ao entrar no salão. Ao se reerguer, disse, brincando: “a monarquia tropeça, mas não cai”.
Não se sabe se a cena de fato aconteceu, mas ela se tornou uma metáfora perfeita daquele momento. A monarquia caiu menos de uma semana depois, com a proclamação da República, data comemorada nesta sexta-feira (15/11).
O baile da Ilha Fiscal, o último e o maior do período imperial, se tornou tão emblemático que virou quase uma expressão idiomática — é evocado quando se quer descrever uma grande celebração antes de um fim.
Como um baile entra para a História? O que ele teve a ver com o fim da monarquia? O que de fato aconteceu naquela noite?
A BBC News Brasil ouviu pesquisadores e leu relatos para responder a essas perguntas.
O que estava acontecendo na política naquele momento?
O baile da Ilha Fiscal foi o ápice da chamadas “festas chilenas”. No ano de 1889, durante dois meses, as autoridades brasileiras recepcionaram oficiais do navio chileno Almirante Cochrane, que visitavam o país em viagem diplomática.
Foram dias e dias de jantares, passeios turísticos às montanhas, corridas de cavalo e regatas — “um nunca acabar de festas”, como descreveu um cronista — que mobilizaram a elite carioca.
O baile seria o mais opulento desses eventos. De acordo com um dos artigos do livro Festas Chilenas (EdiPUCRS, 2014), só o banquete custou 250 contos de Réis, quase 10% do orçamento da Província do Rio.
A imprensa fez uma farta cobertura, em grande parte de forma crítica, do evento. “O baile aconteceu muito nos jornais”, diz Claudia Beatriz Heynemann, pesquisadora do Arquivo Nacional e organizadora do livro Festas Chilenas com Jurandir Malerba e Maria do Carmo Rainho.
“O peso do baile está nesse esgarçamento da opinião pública. Nesse sentido teve um efeito negativo”, diz Malerba.
Os veículos de comunicação descreviam diariamente os eventos e os preparativos para as festas, e os republicanos questionavam e ironizavam os luxos e gastos.
Naquele momento, os movimentos que se tornaram favoráveis à República já corriam fortes, diz Angela Alonso, professora associada do Departamento de Sociologia da USP e pesquisadora do Cebrap, autora de livros e ensaios sobre a República.
Uma série de crises se acumulavam. “A questão não era se a monarquia ia cair, era quando”, diz ela, e começa a listar alguns fatores: desde 1888, o Partido Republicano já tinha representação forte em vários Estados; havia um grupo considerável de pessoas da elite urbana e latifundiários que queriam mais representação política; ao mesmo tempo, os militares, que haviam vencido a Guerra do Paraguai, queriam mais espaço, e ficavam cada vez mais insubordinados. Finalmente, diz a pesquisadora, o programa do chefe do governo, o visconde de Ouro Preto não enfrentava esses problemas com eficácia.
Para piorar ainda mais a situação da monarquia, o último gabinete ministerial havia sofrido uma série de acusações de corrupção, conta Alonso. Por causa disso, opina a professora, a opulência das festas organizadas para os chilenos caiu especialmente mal na imagem pública do governo.
Enquanto a elite passeava com os chilenos, já acontecia a articulação entre militares e civis republicanos que levaria à deposição de Dom Pedro, diz o historiador Jurandir Malerba.
No livro Castelo de Papel (Rocco, 2013), Mary Del Priore diz que num jantar para os chilenos no palácio do príncipe Pedro Augusto, neto de Dom Pedro 2º, a monarquia estava “cercada por aqueles que apostavam na sua sucessão”. “No cardápio, faisão trufado, foie-gras e costeletas de pombo à Pompadour.”
Por que fizeram a festa?
Se a situação política já estava hostil, por que dedicaram tanta energia à realização da festa? Para Alonso, a celebração era, na verdade, parte de uma tentativa de legitimar a princesa Isabel, filha de Dom Pedro 2º, como futura imperatriz, perspectiva que não era nem de longe um consenso, de acordo com a professora.
Dom Pedro 2º tinha mais de 60 anos, estava doente e já havia inclusive recebido extrema-unção – ritual católico em que se aplica óleo consagrado na pessoa enferma, geralmente terminal.
Artigo de jornal sobre o baile — Foto: Reprodução Arquivo Nacional via BBC
“O baile não acontece sozinho”, diz Alonso. Ela conta que, pouco antes das festas chilenas, o marido da princesa Isabel, o conde d’Eu, viajara pelo país em campanha pela monarquia.
Claudia Heynneman vê nos eventos também uma tentativa mais genérica de transmitir uma imagem de força da monarquia, que estava abalada com o movimento republicano.
Para Del Priore, a monarquia estava alienada naquele momento. “Os monarquistas olhavam para o trono como se ele fosse sustentado por forças invencíveis.”
Ela escreve que as festas inclusive mascararam as movimentações republicanas. “A multiplicidade de festas maquilou a insatisfação em curso, empurrando os chilenos para os salões onde se misturavam militares, civis, monarquistas e republicanos. As valsas e hinos nacionais abafavam as tensões. Mas elas estavam presentes. A agenda camuflava o jogo de interesses dos adversários da monarquia”, escreve a historiadora.
Desenho da sala de baile no Gazeta de Notícias — Foto: Reprodução Arquivo Nacional via BBC